Estudos

Em livro cobrado na Fuvest 2026, leit…

Em livro cobrado na Fuvest 2026, leit…

Ao recontar as memórias da própria vida, uma mulher passa por todos os eventos e experiências que a fizeram ser quem ela é. Da infância miserável à carreira marcada pela desigualdade social, a protagonista do romance “Memórias de Martha“, de Júlia Lopes de Almeida, transporta o leitor diretamente para dentro da mente de uma mulher no Brasil do século 19. A obra foi adicionada à lista de leituras obrigatórias da Fuvest 2026, fazendo parte da seleção 100% feminina de livros cobrados na prova.

+ Fuvest 2026: veja nova lista de livros obrigatórios só com mulheres

Ainda que aborde temas bem contemporâneos – como desigualdade social, maternidade solo, machismo estrutural e o papel da educação em vidas marginalizadas –, a narrativa foi publicada pela primeira vez em 1899, no formato de folhetim (publicado em pequenas partes, em jornais ou revistas). Segundo especialistas, o romance seria uma espécie de autobiografia da autora, que utilizou da ficção para recontar a sua própria trajetória.

A narração em primeira pessoa, marcada aqui pela alternância da visão infantil e adulta da protagonista, dá o tom da obra.

+ Quem foi Lygia Fagundes Telles, a dama da literatura brasileira

Entre os pontos principais que o estudante deve prestar atenção ao fazer a leitura para a prova da Fuvest, estão:

  • Narradora em primeira pessoa, Martha narra suas próprias memórias revisitando os fatos com sensibilidade, alternando percepções infantis com reflexões adultas;
  • Parte central da obra é a crítica às estruturas sociais que impedem que a desigualdade seja dissipada no Brasil, mesmo entre aqueles que construíram uma carreira bem-sucedida;
  • O livro navega entre as estéticas do realismo e do naturalismo, tendo tanto o aspecto “pé no chão” do realismo, quanto as questões de determinismo e psicologia humana do naturalismo;
  • Publicada originalmente como folhetim, a narrativa é curta e dividida em capítulos;
  • O livro dialoga diretamente com outras obras do período como “O Cortiço“, de Aluísio Azevedo, e “Opúsculo Humanitário“, de Nísia Floresta.
Continua após a publicidade

O GUIA DO ESTUDANTE convidou a professora de Literatura Isabela Araujo Ramos, Editora de Avaliações do SAS Educação, para detalhar os pontos mais importantes da obra e preparar o estudante que irá prestar a prova da Fuvest.

Abaixo, você confere na íntegra a análise feita por ela.

+ Fuvest: entenda os tipos de questões sobre os livros obrigatórios

Uma história de superação…?

A trama apresenta a trajetória de formação da jovem Martha, cuja vida familiar foi drasticamente transformada após a morte do pai, acusado injustamente de roubo pelos patrões. Sem dinheiro e sem a proteção do status social devido à acusação que condenou o marido, a mãe de Martha assume o comando da família e passa a atuar como engomadeira e costureira, indo morar com a filha em um cortiço no bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro.

É nesse cenário que Martha conhece a fome, a desigualdade social e a realidade desoladora da vida precária de seus vizinhos. Contudo, uma reviravolta com o potencial de mudar o destino de Martha e de sua mãe acontece: a menina tem a oportunidade de ir para uma boa escola. Martha vai descobrir na escola o potencial para se tornar professora, enxergando na educação o único caminho para tirar ela e a mãe da realidade difícil do cortiço.

Continua após a publicidade

É devido à sua formação que outros acontecimentos importantes acontecem na vida de Martha: a saída do cortiço, a entrada em círculos sociais diferentes, o primeiro amor e a primeira desilusão amorosa e também a decepção ao perceber que, ainda que tenha ascendido socialmente, a criação pobre que teve será sempre uma barreira entre ela e as pessoas de classes sociais mais ricas.

Após a viagem que encerra as ilusões de um relacionamento com Luiz, Martha acaba por casar-se com Miranda em nome de tranquilizar as preocupações da mãe, que temia o tratamento social que a filha receberia se continuasse solteira. Após o casamento, Martha entende que tudo que a mãe havia feito até ali era em nome de vê-la segura, de forma que o encerramento do livro tem como foco central a despedida emocionante das duas.

+ Como revisar as obras obrigatórias para o vestibular

Memórias

(Vermelho Marinho/Divulgação)

A escolha da narrativa em primeira pessoa contribui para criar uma atmosfera íntima e emocional no romance. Martha é uma narradora contida que quase não se dirige ao leitor, sendo possível, por vezes, esquecer que ela está retomando suas memórias do passado. Essa decisão narrativa permite que o leitor se aproxime de suas lembranças e se compadeça diante das experiências vívidas e do sofrimento sentido.

Continua após a publicidade

Nesses momentos, ocasionalmente, a Martha “adulta” faz intervenções e apresenta as compreensões “maduras” que ela só teria tido anos depois, como ocorre, por exemplo, na cena em que ela vê a mãe se esconder, envergonhada, de uma velha amiga da família.

“A resposta tive-a anos depois, do tempo, da idade, do destino e dos desenganos. Por que não reconheceria uma senhora rica, elegante, feliz, como uma amiga antiga, a uma mulher decaída, andrajosa quase, e miserável? Havia entre as duas uma barreira que a minha pequena altura não me permitia dominar.”

A crítica central de Júlia Lopes de Almeida está no impacto da desigualdade social na vida das comunidades mais pobres – e a trama garante que o leitor também empatize com a condição que ela descreve e abra os olhos para uma realidade que talvez não lhe fosse conhecida.

A vida de Martha no cortiço é sempre posta em contraste com a realidade de outras meninas como Lucinda, que tem acesso a aulas de piano, bonecas e roupas novas, enquanto Martha e a mãe almoçam pão e café e dependem de esmolas.

“Por que não teria eu igual direito a possuir tudo, como a Lucinda, sem pedir ou aceitar esmola? E por que me fazia tão mal essa palavra, a mim, que nada conhecia do mundo?”, reflete a protagonista.

Continua após a publicidade

+ 9 biografias de grandes personalidades da história

Um cortiço, mas não aquele famoso

Outra coisa que o romance faz é criar um contraponto entre o ambiente do cortiço – sujo, precário e cercado de violências e vícios sociais – ao da escola – organizado e iluminado, símbolo da oportunidade que Martha teria de conquistar um futuro diferente. Historicamente, os cortiços eram habitações coletivas, geralmente em mau estado de conservação, que se popularizaram no Brasil no século 19.

Assim, aglomerados e com pouca assistência sanitária, os moradores viviam em um cenário propício à proliferação de doenças, algo que é retratado no romance, como o episódio em que Martha adoece devido a uma epidemia de difteria.

Há uma intertextualidade com o clássico romance de Aluísio Azevedo, “O Cortiço”. Apesar da obra de Júlia Lopes de Almeida anteceder a publicação da obra naturalista, é possível perceber as aproximações e diferenças na forma como os dois autores retratam esse mesmo ambiente.

Enquanto o cortiço de Azevedo é um personagem da própria história e o determinismo pauta o destino central de todos os personagens, que estão em constante luta pela sobrevivência, Júlia Lopes de Almeida retrata esse determinismo com uma certa sensibilidade, focando na ideia de fuga daquele lugar e ascensão por meio da educação.

Continua após a publicidade

A obra propõe ainda reflexões existencialistas sobre a influência ou não do meio na formação dos indivíduos. A figura de Carolina, vizinha de Martha, é um exemplo disso.

Enquanto a mãe de Carolina é retratada inicialmente como uma mulher agressiva, Carolina é descrita por Martha como uma “flor no pântano”, sua bondade com Martha e com os irmãos soam quase estranhas diante da realidade difícil em que a menina vive, trabalhando até tarde, cuidando da casa e de seus moradores, controlando a mãe em seus acessos.

Apesar de sua bondade, Carolina não escapa de seu destino: sem acesso a uma educação e sem outros meios de mudar de vida, ela termina no mesmo lugar em que começou, resignada diante da realidade de sua condição.

+ ‘O Cortiço’ – Resumo da obra de Aluísio Azevedo

A mulher brasileira do século 19

A autora Júlia Lopes de Almeida posa ao lado do marido, Filinto de Almeida, em sofá
A autora Júlia Lopes de Almeida ao lado do marido, Filinto de Almeida (Vermelho Marinho/Divulgação)

Em meio a pequenos avanços acerca da educação feminina, a sociedade brasileira ainda tinha um julgamento muito forte em torno de mulheres solteiras, o que faz com que Martha – financeiramente independente e já formada – tenha que se casar para atender as necessidades morais de sua época.

“A reputação de uma mulher é essencialmente melindrosa. Como o cristal puro, o mínimo sopro a enturva”, reflete a personagem.

Nesse ponto, a autora propõe ao leitor uma reflexão sobre a figura da mãe na sociedade brasileira. Martha, em suas memórias, propõe de certa forma uma homenagem à mãe viúva, de mesmo nome, que sozinha, sacrificou tudo em nome da educação da filha.

“Com que orgulho eu penso na desvelada solicitude que tem em geral a mulher brasileira para o filho amado! Não o repudia nunca, trabalha ou morre por ele. Coração cheio de amor, perdoemos-lhe os erros da educação que lhe transmite e abençoemo-la pelo que ama e pelo que padece!”

Há uma forte conexão entre “Memórias de Martha” e “Opúsculo Humanitário”, de Nísia Floresta, também presente na lista da Fuvest. A obra de Nísia Floresta, publicada em 1853, apresenta uma defesa contundente e historicamente embasada sobre a importância da educação das mulheres, algo que sempre foi defendido por Júlia Lopes de Almeida e que é retratado de modo exemplar em sua obra, visto o papel transformador da educação na vida de Martha.

Martha também promove reflexões sobre a devoção incondicional de sua mãe em sua criação, descrevendo os esforços e o exemplo que ela deu para a filha.

Esse papel da mãe como um pilar que deve inspirar e engrandecer a formação da filha é uma pauta também discutida por Nísia Floresta em “Opúsculo Humanitário”, no qual ela defende que a base da formação das meninas depende integralmente dos exemplos obtidos em casa, especialmente por parte da figura materna. “Uma mãe é então o quadro mais eloquente, para lhes servir de norma em sua conduta futura, o modelo que devem primeiro copiar”, afirma Nísia em seu manifesto.

+ Desigualdades sociais: entenda como surgem e por que elas se perpetuam

Mistura de realismo com naturalismo

Quanto a corrente literária, o romance apresenta características típicas do realismo e do naturalismo, tanto em sua temática quanto em suas decisões estéticas. A trama crítica, despojada de idealismos e centrada em fazer uma denúncia social acerca da realidade dos cortiços é exemplar do realismo brasileiro, movimento literário que se dedicou a expor as mazelas sociais do país e a refletir sobre o comportamento da sociedade brasileira em meio a suas hipocrisias e vícios.

Ainda que Martha apareça na trama como uma personagem empática e bondosa cuja vida é transformada pela educação, sua desilusão amorosa e sua constante frustração com a situação social em que se encontra revelam traços dessa vertente crítica e “pé no chão”, deixando de lado a protagonista idealizada e romântica de movimentos literários anteriores.

+ Realismo e Naturalismo: contexto histórico, autores e dicas

Além disso, a obra também apresenta traços temáticos e estéticos comuns ao naturalismo, em especial a discussão sobre o determinismo. Dessa forma, ao retratar o cortiço como um organismo social em que diferentes tipos sociais viviam e evoluíam – ou não – conforme as condições de seu meio, Júlia Lopes de Almeida reflete sobre o quanto as condições precárias e a violência poderiam selar o destino dos indivíduos.

A descrição crua e objetiva, quase animalizada de alguns personagens, também reforça a estética do naturalismo, como é possível observar na descrição da ilhoa feita por Martha na seguinte passagem:

“Estava muito mais velha, por certo. O seu cabelo encaracolado e negro agora branco, o rosto denegrido descabido em quatro rugas fundas: das narinas ao queixo, dos lacrimais às faces. Mas lá ia direita, rebolando os quadris fortes, em passadas firmes, à busca do seu fardo de besta de carga”. 

Outro fato que permeia a estrutura do romance é a sua publicação original em formato de folhetim. Para todos os efeitos, “Memórias de Martha” é uma narrativa curta, de poucas páginas, que trabalha uma série de episódios e personagens, apesar da pouca extensão. A habilidade da autora de condensar tantas temáticas em poucas páginas é um reflexo dessa publicação inicial em folhetim e reforça o objetivismo da trama, bem como sua eficácia em transmitir suas mensagens centrais.

+ A revolucionária francesa guilhotinada por defender os direitos das mulheres

Pontos de atenção

É importante que o estudante observe que a história de Martha é uma trama sobre a queda social de uma família que antes pertencia a uma classe mais alta. Esse é um elemento que reaparece nas obras de Júlia Lopes de Almeida, como em seu famoso “A Falência”.

No caso de “Memórias de Martha”, antes da morte do pai, Martha e sua mãe tinham até mesmo criados e a narradora chega a mencionar uma “velha mulata religiossíma”, o que chama a atenção para as questões étnico-raciais de um Brasil que vivia o contexto da abolição da escravatura.

As referências sutis da obra a essa pauta também aparecem na chegada de Martha a escola, ao conhecer a menina Matilde, e na descrição que a personagem faz de Eulália, uma das moradoras do cortiço. O estudante também deve estar atento para todo o panorama social do cortiço: o fato de o dono ser português, a coexistência de famílias de diferentes origens étnicas, personagens como Túlio, Giovanni e Bernardo…

O cortiço é utilizado pela autora como um espelho social e cada informação sobre ele é importante para compor a oposição entre esse ambiente instável e a estabilidade fornecida pela escola.

+ Como as obras obrigatórias da Fuvest podem se relacionar

A obra ainda proporciona uma reflexão muito interessante sobre saúde mental, algo que pode estabelecer uma conexão importante com temas amplamente discutidos na contemporaneidade.

Ao longo do livro, Martha revela-se uma personagem melancólica e pessimista, que está sempre em alerta para potenciais tragédias, o que promove uma interessante análise sobre o impacto da desigualdade na saúde mental dos indivíduos.

“Os meses foram correndo. Eu estudava muito, mas, ou pelo esforço intelectual, ou por fraqueza física, estava sempre nervosa, irritada e magra. A minha preocupação constante era ser vítima de um desastre imprevisto”.

E, claro, um dos temas mais importantes da obra é a relação de Martha com a mãe. Nos momentos finais, uma das passagens mais importantes da trama sintetiza a essência da relação de culpa, devoção e união estabelecida entre as duas: “A minha santa, a minha inigualável amiga, atravessou todas as misérias sustendo-se sempre nas asas. E que naquele corpo estreito, fraquíssimo, doente, havia uma alma forte, um coração sublime!”.

* Por Isabela Araujo Ramos, professora de Literatura e Editora de Avaliações do SAS Educação

Memórias de Martha

Autora Júlia Lopes de Almeida posa sentada em sua casa, ao lado há uma sobreposição com a capa do seu livro,

Entre no canal do GUIA no WhatsApp e receba conteúdos de estudo, redação e atualidades no seu celular!

Compartilhe essa matéria via:

 Prepare-se para o Enem sem sair de casa. Assine o Curso GUIA DO ESTUDANTE ENEM e tenha acesso a todas as provas do Enem para fazer online e mais de 180 videoaulas com professores do Poliedro, recordista de aprovação nas universidades mais concorridas do país.

Related posts
Estudos

CIEE leva palestra sobre qualificação e profissões do futuro ao Feirão do Emprego, em Belém (PA)

Nesta quinta-feira, 29 de maio, Rodrigo Dib, Superintendente Institucional e de Inovação do Centro…
Leia mais
Estudos

8 milhões ainda não prestaram contas

Falta apenas um dia para o fim da declaração do Imposto de Renda 2025 e mais de 8 milhões de…
Leia mais
Estudos

Enem volta a valer como certificado d...

A prova do Enem 2025 (Exame Nacional do Ensino Médio) poderá novamente ser usada para obter o…
Leia mais
Privacy Overview

This website uses cookies so that we can provide you with the best user experience possible. Cookie information is stored in your browser and performs functions such as recognising you when you return to our website and helping our team to understand which sections of the website you find most interesting and useful.